Mulheres negras e com origem em regiões periféricas consideram que as revelações mais recentes do caso Marielle Franco mostram que a atuação política delas é um risco, pelo fato de mostrarem resistência à ligação entre crime e agentes do estado.
A ação foi deflagrada pela Procuradoria-Geral da RepĂșblica (PGR), pelo Ministério PĂșblico do Rio de Janeiro (MPRJ) e pela PolĂcia Federal (PF).
Nascida no morro do São Carlo, a menos de um quilômetro de onde o carro de Marielle foi atingido por 13 tiros em uma noite de março, a deputada estadual Dani Monteiro (Psol) se tornou, aos 27 anos, a mulher mais jovem a ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
Segundo Dani Monteiro, "trabalhar por direitos humanos passa sempre por um embate contra interesses escusos de operadores do aparato estatal". Ela diz acreditar que o Rio de Janeiro, desde a fundação, "é estruturado por grupos polĂticos que tĂȘm projeto de poder próprio e que se articulam de modo a manter as instituições sob seus domĂnios.
A deputada, que foi assessora parlamentar de Marielle, diz ver na investigação da PF que o Estado é o próprio gerador de insegurança, "pois promove violĂȘncia em diversas modalidades, funcionando como parte de projetos de poder dessas pessoas que estão, hĂĄ anos, operando politicamente e institucionalmente".
"É claro que perceber tudo isso deve nos deixar alerta. Nosso trabalho gera exposição, gera riscos, mas precisa ser feito. Expor, debater e propor caminhos é o que deve resultar de tudo isso. É o que nós vamos seguir fazendo, disse à AgĂȘncia Brasil.
A militante pelos direitos humanos e ex-deputada estadual (2018-2022) Mônica Francisco, que era assessora de Marielle na Câmara de Vereadores à época do crime, disse à AgĂȘncia Brasil que recebeu com muita surpresa a notĂcia do envolvimento do delegado Rivaldo Barbosa no crime. "Era uma pessoa próxima a Marielle, de nós, ativistas de direitos humanos. A gente tinha o Rivaldo Barbosa como uma figura aliada, de muita cumplicidade e parceria".
Rivaldo Barbosa foi a primeira autoridade a receber as famĂlias do motorista Anderson Gomes e Marielle após o assassinato.
Mônica lembra que ela e toda a equipe da vereadora foram diversas vezes à delegacia de homicĂdios serem interrogadas.
"Completamente descobertos, à mercĂȘ. A segurança que a gente tinha é de que havia, principalmente por parte do Rivaldo, uma possibilidade de um pouco mais de confiança nesse processo", conta.
Ela classifica as prisões como uma constatação de que a morte de Marielle foi um crime polĂtico, perpetrado por setores da polĂtica completamente alinhados com setores da polĂcia. "Organizados em uma ação desse tamanho e tendo uma atividade pregressa no submundo do crime, tendo o escritório do crime no lugar de trabalho do chefe da PolĂcia Civil à época e umbilicalmente ligados", aponta.
Essa ligação entre criminosos e autoridades faz com que Mônica veja a atuação dela e de ativistas como uma "atuação polĂtica de risco".
"A gente estĂĄ completamente descoberto. Acho que é uma necessidade muito grande de se rever a segurança pĂșblica no estado do Rio de Janeiro. Quem deveria proteger, combater e ser um aliado na luta contra a violĂȘncia polĂtica é o próprio agente desse risco, é o próprio agente da violĂȘncia perpetrada contra nós, principalmente sendo mulheres negras periféricas. A gente precisa de uma segurança pĂșblica que seja cidadã, que seja saneada", avalia.
Para a deputada federal TalĂria Petrone (Psol-RJ), que era amiga e companheira de militância de Marielle, muitos estados do paĂs, especialmente o Rio de Janeiro, se organizam de forma que "crime e polĂtica são indissociĂĄveis".
"Isso é uma grande ameaça à democracia, a quem luta contra o domĂnio armado dos territórios, contra violĂȘncia estatal, e a representantes polĂticos que expressam esse enfrentamento de forma mais contundente", diz à AgĂȘncia Brasil TalĂria, que revela ter que andar com escolta e carro blindado por conta de ameaças de grupos de ódio e de milĂcias do Rio de Janeiro.
A deputada considera que o caso Marielle evidencia a urgĂȘncia de enfrentar de forma contundente o poder das milĂcias. "Não dĂĄ para o crime governar em nenhum lugar".TalĂria informou que, ao lado de outros parlamentares, protocolou na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) contra as milĂcias. Pelo texto, crimes cometidos por grupos paramilitares com participação de agentes do Estado possam ter a investigação transferidas para a esfera federal.
"A PEC contra as milĂcias possibilita que a gente tire das mãos dos algozes a investigação de crimes cometidos por agentes do Estado. MilĂcia é o estado, mistura poderes polĂtico, econômico e armado. Os crimes cometidos por esses agentes não podem ser investigados por aqueles que estão envolvidos nesses esquemas. Por isso, a possibilidade de federalização, de deslocamento para Justiça Federal, é um avanço enorme para nossa democracia", explica.
A PEC precisa de ao menos 171 parlamentares para ser discutida na Casa.
A deputada estadual Renata Souza (Psol-RJ), que foi chefe do gabinete de Marielle na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, afirmou, em entrevista à TV Brasil, que recebeu as notĂcias com uma mistura de sentimentos. "Os sentimentos estão misturados, indignação, mas também alĂvio e esperança. É evidente que o feminicĂdio polĂtico da Marielle tem uma engrenagem muito aterrorizante da violĂȘncia polĂtica no Rio de Janeiro, que é crime, polĂcia e polĂtica".
Assim como Marielle, Renata foi criada no conjunto de favelas da Maré, no Rio.
"É fundamental que sigamos [pedindo] justiça para Marielle e para tantas outras mulheres negras, de favela, de periferia que tombam todos os dias diante de uma estrutura polĂtica que tem homens brancos criminosos, policiais, por trĂĄs dessa engrenagem tão cruel".
A diretora executiva do Instituto Marielle Franco, LĂgia Batista, classifica o dia das prisões dos irmãos Brazão e do delegado Rivaldo Barbosa como histórico. "Um dia que vai ficar marcado para sempre nessa caminhada e luta por justiça, não só para as famĂlias de Marielle e Anderson, mas para todas nós, pessoas que nos entendamos como sementes dessa luta", disse em entrevista à RĂĄdio Nacional, emissora da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
O Instituto Marielle Franco foi criado após o assassinato, como forma de buscar justiça e manter vivo o legado de Marielle.
LĂgia ressalta que a notĂcia de envolvimento de agentes pĂșblicos foi recebida com "indignação".
"Essa fratura exposta que se tornaram esses assassinatos faz com que a gente precise, cada vez mais, questionar essa relação espĂșria entre polĂcia e polĂtica". Apesar de reconhecer a importância das prisões, LĂgia lembra que passados 6 anos, nenhum executor ou mentor do crime foi condenado pela Justiça. Ela pede que a condenação dos envolvidos seja um sinal de basta.
"É inaceitĂĄvel que a lógica da nossa cultura polĂtica seja a do extermĂnio, seja a lógica que rechaça o embate de ideia e que admite, isso hĂĄ bastante tempo no nosso paĂs, a cultura da violĂȘncia como a expressão mĂĄxima da nossa forma de construir reflexão polĂtica no paĂs", afirmou.
De acordo com as investigações da PolĂcia Federal (PF), o assassinato de Marielle Franco foi motivado por questões fundiĂĄrias envolvendo as milĂcias do Rio de Janeiro. O relatório da PF cita uma divergĂȘncia entre Marielle Franco e o grupo polĂtico do então vereador Chiquinho Brazão em torno do Projeto de Lei (PL) 174/2016, que buscava formalizar um condomĂnio na zona oeste da capital fluminense.
Marielle e Anderson Gomes foram assassinados a tiros enquanto se deslocavam de carro após uma agenda de trabalho, em 14 de março de 2018, na região central do Rio de Janeiro.